Ponto de partida: “O Filho de Deus assumiu a condição humana, nascendo e vivendo como membro de um determinado povo e em uma realidade histórica”… (Diretrizes 2015, n.16). Por isto, seguindo seus passos, “Evangelizar é tornar o Reino de Deus presente no mundo”(EG 176) . É isto que justifica que a Igreja seja sempre uma Igreja em saída(EG 20),para cumprir o mandato missionário de Jesus anunciando a todos a mensagem do Evangelho e privilegiando “não tanto aos amigos e vizinhos ricos, mas, sobretudo, aos pobres e aos doentes, àqueles que muitas vezes são desprezados e esquecidos”… (EG 48) e dando testemunho do Evangelho da vida e da promoção da justiça e da paz(Diretrizes 17) transformando a vida social num espaço de fraternidade e de dignidade para todos (EG 180).”Uma fé autêntica – que nunca é cômoda nem individualista – comporta sempre um profundo desejo de mudar o mundo” (EG 183), “a preocupação pelo desenvolvimento integral dos mais abandonados da sociedade (EG 186).
Vivemos hoje numa nova era (LS 102), uma época de profundas transformações: a humanidade vive hoje uma viragem histórica com enormes sucessos em vários âmbitos da vida e igualmente grande precarização da vida humana com funestas consequências(EG 52). Por isto se faz necessário antes de tudo para a evangelização nos darmos conta dos “traços gerais” da forma da sociedade moderna em que vivemos que é extremamente complexa e diferenciada, para compreendermos as raízes da situação atual, seus sintomas e suas causas mais profundas(LS 15). Os Pastores, diz o papa, “acolhendo as contribuições das diversas ciências, têm o direito de exprimir opiniões sobre aquilo que diz respeito à vida das pessoas, dado que a tarefa da evangelização implica e exige uma promoção integral de cada ser humano” (EG 182)
1. Situação do mundo
1.1. Estas grandes mudanças ocorreram porque nossa vida é hoje configurada a partir do que o papa chama de Paradigma Tecnocrático: tudo que fazemos tem a presença da técnica.”O paradigma tecnocrático tende a exercer o seu domínio também sobre a economia e a política”(LS 54, 109). O resultado disto é que foi no seio da nova revolução tecnológica no âmbito da informação, dos transportes e das comunicações, que se gestou um modo novo de acumulação e regulação do capital, a globalização ou mundialização. Trata-se de um tipo de “liberalismo transnacional” já que por decisões políticas desregulamentou o mercado mundial, sobretudo os mercados financeiros produtores da especulação em grande escala e estimuladores da criação dos paraísos fiscais, uma “financeirização que sufoca a economia real”(LS 109). Este processo pôs, assim, o sistema financeiro como o centro da economia. Aqui fica claro que nesta configuração societária o desenvolvimento tecnológico se faz exclusivamente em função da maximização dos lucros sem preocupação com uma melhor distribuição da riqueza, com um cuidado responsável do meio ambiente e dos direitos das gerações futuras(LS 109). Em nosso mundo, o super-desenvolvimento dissipador e consumista convive com a miséria desumanizadora.
Para o Papa isto gestou uma “idolatria do dinheiro” que domina sobre nós e nossas sociedades e revela a profunda crise antropológica que nos marca: a negação da primazia do ser humano e sua redução a uma única de suas necessidades: o consumo. Isto gera uma economia sem rosto e sem um objetivo verdadeiramente humano (EG 55) que degrada o ambiente humano e o ambiente natural em conjunto, cujos efeitos mais graves recaem sobre os pobres (LS 48) e seus problemas são colocados como um apêndice (LS 49). O ser humano é considerado um bem de consumo que se pode usar e depois lançar fora o que gera a cultura do descartável. A novidade neste contexto é que não se trata mais apenas de exploração e opressão, mas literalmente de “exclusão”.Essa economia mata (EG 53).
A globalização aprofundou os processos de interconexão econômica, política e cultural, provocando uma permuta mais ampliada entre os países e os povos aumentando a interdependência ainda que de forma assimétrica: o super-desenvolvimento dissipador e consumista convive em nosso mundo com a miséria desumanizadora(LS 109). Este processo aumentou a produção e a riqueza mundiais com distribuição desigual de seus resultados já que privilegiando elites hegemônicas e degradando os ecossistemas. “A tudo isso vêm juntar-se uma corrupção ramificada e uma evasão fiscal egoísta, que assumiram dimensões mundiais. A ambição do poder não conhece limites” (EG 56). Este é um verdadeiro câncer social (EG 60).
A globalização desta forma transformou profundamente a organização econômica, as relações sociais, os modelos de vida e cultura, os estados e a política e acelerou enormemente mudanças. No entanto, diz o Papa, os problemas da fome (quando a comida que se desperdiça atualmente é aproximadamente um terço dos alimentos produzidos (LS 50)) e da miséria no mundo não serão, como se propala, resolvidos simplesmente pelo mercado, pois “o mercado, por si mesmo, não garante o desenvolvimento humano integral, nem a inclusão social”(LS 109). Além disto se produziu entre nós a “globalização da indiferença”: fascinados pela cultura de bem-estar nos fizemos incapazes de ouvir os clamores de suas vítimas. …”já não choramos à vista do drama dos outros, nem nos interessamos por cuidar deles”… (EG. 54).
1. 2. A influência deste paradigma em nossa vida é tão grande que ele se transformou no recurso mais importante para interpretar nossa própria vida (LS 110). Isto gerou o “antropocentrismo moderno” (LS 115): o ser humano se considera o centro do universo, a natureza é reduzida a espaço e matéria de sua ação humana e ele seu dominador, explorador dos recursos naturais radicado na “mentira da disponibilidade infinita dos bens do planeta”(LS 106). Assim, ele não reconhece mais o valor intrínseco de tudo o que não é humano e a realidade se transforma em mero objeto de uso e domínio(LS 11). Isto produz uma cultura antropocêntrica: a técnica se revela como um poder universal que perpassa e atinge tudo (LS 108). O ser humano se declara dominador absoluto da realidade e com isto desmorona a própria base de sua existência(LS 117).
Uma consequência muito grave disto é o relativismo prático(LS 122): não há verdades objetivas fora da satisfação das aspirações próprias e das necessidades imediatas. Tudo o que não serve aos interesses imediatos de alguém perde qualquer interesse. O relativismo não só reduz a natureza aos interesses privados de uma pessoa, mas os outros seres humanos são reduzidos também a objetos manipuláveis. Esta postura leva à degradação ambiental e à degradação social e termina por legitimar qualquer prática.
1.3. Uma outra consequência desta situação é a falta de segurança em virtude da violência que não desaparecerá “enquanto não se eliminarem a exclusão e a desigualdade dentro da sociedade e entre os vários povos”(EG 59)… Quando, diz o Papa, a sociedade abandona uma parte de si mesma na periferia, “não há programas políticos nem forças da ordem ou serviços secretos que possam garantir indefinidamente a tranquilidade”…(ibid.) “…o sistema social e econômico é injusto na sua raiz”. Não se pode esquecer que “um mal embrenhado nas estruturas de uma sociedade sempre contém um potencial de dissolução e de morte”(ibid.).
1.4. Um outro traço básico de nossa civilização é o individualismo pós-moderno promotor de um estilo de vida que enfraquece o desenvolvimento e a estabilidade dos vínculos interpessoais e distorce os vínculos familiares. Nesta cultura, cada um pretende ser portador de uma verdade subjetiva própria o que torna muito difícil a inserção das pessoas num projeto comum, pois desaparece a própria noção de Bem Comumo que muitas vezes leva a níveis alarmantes de ódio e violência e a uma indiferença relativista generalizada(EG 61) que constitui uma degradação ética (LS 56). Na cultura dominante está em primeiro lugar o que é exterior, imediato, visível, rápido, superficial e provisório. O real cede lugar à aparência. Tudo isto provocou uma deterioração acelerada das raízes culturais (EG 62).
1.5. Nossa civilização tecnológica se encontra diante de uma encruzilhada que toca o próprio futuro da humanidade como um todo. Daí o desafio básico: Proteger nossa casa comum. Isto implica a preocupação de unir toda a família humana na busca de um desenvolvimento sustentável(em que se leva em conta a capacidade regenerativa de cada eco-sistema) e integral(a análise ambiental é inseparável da análise dos contextos humanos) (LS 13). Assim, é urgente renovar o diálogo sobre a maneira como estamos construindo o futuro do planeta (LS 14).
2- Situação atual do Brasil
2.1. Que está em jogo em última instância nesta situação difícil e não aparece na opinião pública, no sistema dos meios de comunicação social, na fala do governo e dos partidos?
Um processo profundo de democratização de nossa vida social que teve seu início com a Nova Constituição de 1988.Foi ela que criou as regras do jogo democrático que permitiram o início dos avanços. Este processo sem dúvida implica em primeiro lugar vencer a fome, a miséria e a pobreza, mas muito mais radicalmente ainda implica construir a configuração estrutural de um país onde todos possam ter uma vida que signifique efetivação de sua dignidade. Desde então, apesar dos inúmeros e enormes desafios que ainda temos a vencer, o Brasil mudou sua cara através das políticas de inclusão (L. Dowbor): entre 1991 e 2012, a expectativa de vida passou de 65 para 75 anos, 10 anos a mais; a mortalidade infantil baixou de 30 para 15 por mil (um avanço gigantesco).
Há na sociedade uma convergência de mudanças: essas pessoas passaram a ter uma casa mais decente, a comer, são beneficiários da expansão do serviço básico de saúde, muitos do serviço de saneamento básico; criaram-se 20 milhões de empregos (embora muitos em setores de baixa produtividade) que dobraram a quantidade de pessoas inseridas no mercado de trabalho, aumentou-se do poder de compra do salário mínimo, 40 milhões de pessoas saíram da miséria, embora pelo menos 16 milhões ainda persistam nesta situação, há 40 milhões de beneficiários do Bolsa Família (o volume das transferências de renda chega a 18,5 bilhões de reais ou seja 0,5% do PIB enquanto os juros da dívida pública atingem 5,%).
De acordo com o Atlas das Regiões Metropolitanas, houve uma redução drástica da pobreza em todas essas regiões embora o aumento da renda não acompanhe o crescimento dos ganhos de produtividade industrial, e um aumento dos Indicadores do Desenvolvimento Básico (IDB). Houve também melhora dos Indicadores do Progresso Social, que acompanha 54 indicadores e coloca o Brasil no 42º lugar entre 130 países, puxado para baixo essencialmente pelo problema da segurança, que é o ponto crítico e está diretamente ligado ao problema da desigualdade. Esta voltou a aumentar em escala mundial com a globalização da economia em que o Brasil entrou a partir dos anos 90.Todas estas conquistas viabilizaram uma série de avanços significativos na década de 1990. A partir do governo Lula isso se sistematiza com a proposta de combinar crescimento e justiça social que deveria ter o seu centro nas reformas estruturais o que não ocorreu e se possa perguntar se justiça social não foi reduzida aqui à dimensão do consumo individual.Contudo, em todo este processo os ricos continuam a ganhar mais que os pobres.
No Atlas Brasil 2013 de Indicadores de Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), se compararmos os índices de 1991 e 2010, observamos grandes avanços. Em 1991 nós tínhamos 85% dos municípios do Brasil que com um IDH muito baixo, inferior a 0,50. Em 2010 apenas 32 municípios estavam nessa situação, ou seja, 0,6%. Essa é uma mudança extremamente profunda e estrutural. Foi um avanço também a ruptura com a inflação. Afinal, numa hiperinflação não se consegue fazer administração do setor público.
2.3. Durante décadas, desde o século passado, as grandes corporações econômicas exigiram em nível global total liberdade de ação(neoliberalismo) e garantiram que sem a intromissão do Estado na economia resolveriam todos os problemas do planeta. A tese de fundo é que o mercado e a auto-regulação constituíam mecanismos suficientes para o equílibrio dos processos econômicos.Na realidade o Estado se tornou refém da acumulação rentista.Os resultados foram terríveis.Em virtude deste processo, o Brasil hoje vive vários impasses. Houve uma forte expansão fiscal provocada pelas desonerações fiscais (mais de 100 bilhões de reais para grandes empresas), despesas elevadas dos títulos do governo devido às taxas de juros, queda dos investimentos e queda da arrecadação em virtude do baixo crescimento,tudo isto agravado com a grave crise de confiança no governo (acusação de”intervencionismo”).
Um dos impasses foi o impacto de movimentos especulativos, sobretudo no mercado de commodities que constituem o grande peso das exportações brasileiras hoje,produzindo uma reprimarização das exportações, e que sofreram uma violenta queda em seus preços em 2014. Nos últimos 12 meses, o “minério de ferro”, por exemplo, que tem um grande peso na pauta de exportações brasileiras, perdeu 40% do seu valor; a soja, a laranja e outras commodities encolheram entre 20% e 30%. Além disto ocorreu uma desindustrialização do país.
São cifras bastante significativas. No plano interno, o país vive um limite estrutural:o Brasil conquistou um conjunto de avanços, em particular nos governos de Lula e no primeiro governo de Dilma, mas os processos de expansão das políticas sociais chegaram a um limite, ou seja, esgotou-se a possibilidade de simples continuidade do processo de “inclusão social via consumo”(democratização do consumo) que se encontra travado. Abre-se a necessidade de uma fase nova: são necessárias “mudanças estruturais”.As eternamente adiadas reformas de base não são mais adiáveis: tratou-se de um distributivismo sem reformas. Tudo indica que os quatro mecanismos usados para conseguir a distribuição de renda se esgotam simultaneamente: aumento do salário mínimo, políticas de transferência de renda, formalização do trabalho e o crédito (C. Benjamin). Que agravou esta urgência para além de sua necessidade normal?
2.4. O sistema financeiro emperra a locomotiva
O capitalismo financeiro impõe severas limitações ao momento seguinte desses avanços sociais, ao avanço do Brasil em direção ao futuro. Está em curso um processo de globalização financeira que torna difícil ao país adotar políticas macroeconômicas independentes e as reformas financeiras que são necessárias. Quando se cobra nos crediários mais de 100% de juros, a intermediação financeira está se apropriando da metade da capacidade produtiva da população.( L. Dowbor). O imenso esforço que o Brasil fez de redistribuição e de inclusão no mercado de dezenas de milhões de pessoas, os bancos, os comerciantes com crediários, as administradoras de cartões de crédito capturaram: isto gerou uma espécie de elite que vive de juros e não da produção. As instituições de crédito sugaram a capacidade de compra da população, e dessa forma esterilizaram a dinamização da economia pelo lado da demanda.
É necessário que não esqueçamos que o volume de recursos apropriados pelo sistema financeiro seriam suficientes para financiar tanto a reorientação tecnológica que o meio ambiente exige como a inclusão produtiva que a dinâmica social determina. Só do Brasil saíram 500 bilhões de dólares para paraísos fiscais (25% do PIB que poderia financiar muita coisa). O mercado financeiro impõe suas exigências e qualquer decisão em direção contrária provoca pressões políticas fortes e um bombardeio da mídia para amedrontar a população(governo Dilma com a taxa Selic e os juros de acesso ao crédito, ela teve que voltar atrás). Neste contexto convém lembrar que o voto no Brasil até então foi determinado por uma gigantesca máquina de financiamento.
Os juros para pessoas jurídicas, por sua vez, são absolutamente agressivos, o que trava também a economia pelo lado do investimento. Os empresários já tendem a investir pouco quando a economia está travada. Quando, ainda por cima, adquirir equipamentos e financiar empresas custa de 40% a 50% de juros, então esqueça de novos investimentos. Por tudo isto, o orçamento do governo federal teve um déficit de 6,7% do PIB.A intermediação financeira drena em volumes impressionantes recursos que deveriam servir ao fomento produtivo e ao desenvolvimento do país. O Brasil tem uma renda per capita de US$ 11 mil – e isso é um nível de renda de um país rico. O nosso país também domina tecnologias e tem instituições. Não existem razões plausíveis para a economia não funcionar. Contudo, a generalização da inclusão social e a redução dos desequilíbrios internos esbarram em razões estruturais.
2.5. A resistência das elites e a crise política. Nesta tensão, a resistência das elites mostra-se extremamente forte, agressiva, violenta, desrespeitosa, intolerante. Criou-se um ambiente de sensibilidade à flor da pele, de ódio mesmo, onde o que conta são emoções e sentimentos e não argumentação. Torna-se impossível qualquer discussão civilizada. É por isso que a crise que se gera é essencialmente política atribuída pela mídia aos maus resultados da economia que ameaçam com uma longa e penosa recessão e ao envolvimento do PT no escândalo da Petrobras. Não há base para falar numa crise de enormes proporções, ou que o país está quebrado, ou ainda que vai quebrar. Isso não faz o mínimo sentido, embora a mídia tenta com meios muito sutis convencer a população de uma catástrofe iminente que não é a catástrofe da vida desumana de milhões. Podem até ocorrer ajustes que levem a uma racionalização de gastos do governo, mas isto não anula simplesmente a realidade de que o país está num ciclo de avanços importantes.
2.6. A reação do governo à crise (Cf. G. Delgado) e à reação das elites foi o ajuste fiscal,um conjunto de políticas que busca equilibrar o orçamento do governo, um remédio amargo que produz imediatamente uma forte redução na atividade econômica. A justificativa para a adoção de um ajuste fiscal era a de que esta seria a melhor forma de recuperar a capacidade de financiamento do setor público, evitando assim o rebaixamento na nota soberana do Brasil (os investimentos estrangeiros no país quase que triplicaram quando em 2008 o país obteve o selo de bom pagador passando de US$ 19 bilhões(2012-2007) para US$ 54 bilhões(2008-2014)). O pressuposto tanto da política anterior (programa anticíclico) como da atual (ajuste fiscal)é que há uma crise econômica no sentido da reversão de um certo ciclo de crescimento que foi de 4 % entre 2004-2010 para 1,6% de 2011-2014. No primeiro governo Dilma, a política econômica opera um grande “programa anticíclico”, cujo objetivo básico era defender a economia brasileira da crise financeira externa que ainda não se recuperou da grande recessão de 2008 (provocada pela crise financeira norte-americana).
O cerne desta política: o financiamento público a longo prazo a partir das transferências do Tesouro ao BNDES (mais de 400 bilhões de 2009-2014) para os projetos de infraestrutura do PAC e parcerias público-privadas e ainda investimentos dos sistemas da Petrobras e Eletrobras. Também com recursos públicos financiamento do Sistema Nacional de Crédito Rural basicamente para o agronegócio e o crédito ao consumo. Este conjunto de “incentivos ao crescimento” funcionou num primeiro momento, mas se revelou frágil desde 2011 para sustentar um crescimento razoável pelo travamento da economia e porque as bases estruturais de nossa configuração social não foram tocadas e se preferiu pôr o peso da distribuição de renda sobre os gastos fiscais do Estado (C. Benjamin)
Em 2012 e, sobretudo em 2014, o governo adota um conjunto de facilidades (incentivos) ao sistema empresarial (setores: detentores de terras, águas, minas e campos petroleiros de cujos recursos naturais se extraem as commodities): desoneração da folha patronal, redução de tarifa elétrica e de preço de combustíveis, redução tributária para automóveis e eletrodomésticos. Além disto, alívios de pagamentos de estados e municípios nas dívidas com a União. Todas estas medidas têm custo fiscal e endividamento público (este foi o resultado) e só são eficazes no combate à crise se a economia de fato crescer o que não ocorreu.
Ora, os preços externos dos produtos destes setores despencaram. Consequentemente todos esses sistemas perderam seus trunfos de competitividade externa o que levou a uma queda gradual do peso do saldo comercial na formação do PIB (Hoje há um déficit de 4,5% do PIB o que inviabiliza a sustentação do crescimento com recursos poupados por outros países que financiavam nossos gastos internos em investimentos e crédito). A dívida pública do governo deverá alcançar neste ano 65,5% do PIB. As despesas com juros em um ano devem atingir 490 bilhões e os gastos correntes incluindo a manutenção da máquina administrativa devem atingir 8% do PIB, oito vezes mais do que se gasta em investimentos além do fato de que a combinação de desaceleração da economia com desoneração fiscal esvaziou a arrecadação (M. Pochmann), acrescente-se aqui a sonegação que atinge 500 bilhões por ano.
As elites e alguns economistas apontam os gastos sociais como o principal responsável pela expansão das despesas nos últimos anos e apresentam o país em fase terminal. Certamente este é um fator fundamental para a expansão das despesas, mas a pergunta que aqui brota é: podemos escolher os benefícios sociais como vilões do desequilíbrio fiscal? Certamente esta é uma proposta boa para aqueles que não só não sentem a crise, como aumentam suas riquezas via sistema financeiro. Nosso país virou um país de rentistas que vivem apenas gerindo heranças e aplicando seu capital.
Daí a reação brutal à CPMF que incide sobretudo sobre os que usam o sistema financeiro e ao imposto sobre as grandes fortunas. (V. Safatle). Que país, afinal, queremos? E se examinarmos a tese de que há alternativas não só sem corte mas com avanço nas conquistas sociais? Não foram o desenvolvimentismo e sua consciência social que provocaram esta situação caótica (F. Salto/N. Marconi).
É neste contexto de desmonte da economia que surge a resposta do governo: ajuste fiscal (choque de austeridade)com ações de contração econômica (corte corajoso de gastos, leia-se cortes em educação, saúde, políticas de transferência de renda, etc.). Dos cortes anunciados a maior parte se concentrou em investimentos (nas obras do PAC 37% que estão parando) e nos gastos sociais. De qualquer forma se mostramuito complexo combinar positivamente recessão e ajuste fiscal (M. Pochmann).
Ações programadas do ajuste: 1) Fim do programa de transferências do Tesouro para o BNDES; 2) Corte de gasto social (pensões); 3) Cancelamento de desonerações e adiamento das dívidas de estados e municípios. Além disto ocorreu: 1) Queda das exportações de commodities; 2) Crise no sistema Petrobras e de suas parcerias com bolhas de inadimplência. Certamente, um certo equilíbrio fiscal pode ser alcançado por este caminho. A pergunta que se impõe aqui é: a que preço? (V. Safatle).
Para o economista G. Beluzzo, este ajuste fiscal é um desajuste, um erro de diagnóstico que deprimiu os investimentos (o que levará o PIB neste ano a uma queda forte perto dos 3%), reduziu o crédito e elevou o desemprego que já vinha aumentando (445 mil pessoas já perderam o status de trabalhadores formais em 12 meses nas 6 principais regiões metropolitanas, a taxa de desemprego já atingiu 7,6% em agosto (um milhão e oitocentos e cinquenta mil desempregados e tem aumentado o número de trabalhadores por conta própria) e apenas 49,7% têm carteira assinada. Tudo indica que as políticas de ajuste vão tirar bilhões de reais das mãos dos mais necessitados.
Neste contexto de uma economia em declínio ainda houve um choque de juros para fazer a inflação retornar à meta com enormes impactos sobre a dívida pública. A recuperação certamente levará tempo com a credibilidade do governo em queda forte. É muito importante considerar que ambos os programas (O anticíclico e o ajuste) não tocaram os fatores estruturais. Não podemos esquecer que nos anos 60 só a reivindicação de enfrentamento destes fatores (naquela época isto se chamava “reformas de base”) levou ao golpe civil-militar. Nove meses após seu início, o ajuste não apenas piorou a situação fiscal brasileira, como acelerou o rebaixamento da nota do país, além de trazer consigo um aprofundamento da recessão, aumento da inflação e do desemprego.
O argumento de que o fracasso no ajuste se deve ao seu tamanho “diminuto” ou à sua composição inadequada, supostamente baseada em crescimento das receitas, não encontra sustentação nos dados. O esforço fiscal do governo brasileiro em 2015 já alcançou 2,3% do PIB (algo próximo a R$ 134 bilhões), com 80% do ajuste sendo concentrado em redução dos gastos e investimentos públicos e apenas 20% em aumento de receitas. O tamanho expressivo do ajuste e a composição baseada em cortes de gastos era exatamente o pedido dos economistas liberais, que agora justificam o fracasso total de sua estratégia com o argumento de que o problema fiscal é estrutural, clamando pela privatização dos serviços públicos e pelo desmonte da previdência social, em particular os benefícios da assistência social.
Felizmente, como diz L. Dowbor, não há mais pobres como antigamente. As pessoas hoje sabem que podem ter uma saúde decente para seus filhos, acesso a uma educação de qualidade e outros direitos. Por esta razão a crise que hoje vivemos não é simplesmente uma crise global, é na realidade uma crise civilizatória. Que valores devem orientar nossas vidas? Que mundo alternativo queremos construir? Por isto se impõem as perguntas: Que país nascerá deste processo de ajuste? Um país mais desigual ainda, mais injusto e mais violento? A crise seria apenas uma forma de justificar uma exploração maior, um aprofundamento da espiral da miséria? Uma simples mudança de presidente mudará algo se tudo indica que existe um pacto de fundo para que nenhuma mudança drástica de rota ocorra? (V. Safatle).
O verdadeiro impasse em que o país se encontra hoje é: ou avança com as reformas estruturais ou retrocede perdendo até o pouco que conquistou e caminha para uma precarização ainda maior da vida dos desfavorecidos. A saída da crise certamente passa pela radicalização da democracia e de políticas voltadas para o crescimento e inclusão social sustentadas pelas reformas estruturais, sobretudo a “política” (no sistema atual o loteamento do Estado se torna indispensável para garantir a governabilidade), a “agrária” (1% dos proprietários rurais detêm 43% das terras), “financeira” e a “tributária”(um sistema tributário justo e progressivo será certamente uma das fontes de financiamento para uma nova etapa de crescimento com forte consciência social e de inclusão social) . (J. Sicsú) com redução das taxas de juros internas, combate à sonegação, controle da inflação e dos preços públicos(água, energia, combustível), políticas nacionais (seca, violência, saúde, educação, mobilidade, energia). E se não acontece, que virá? Aqui se deve repetir a pergunta de G. Gutierrez que um discípulo de Jesus não pode esquecer: Onde vão dormir os pobres? Como vão dormir os pobres neste mundo?
Manfredo Araújo de Oliveira