Disse Jesus, de quem nos esforçamos para sermos discípulos: “Sede misericordiosos como vosso Pai do céu é misericordioso” (Lc 6, 36). Ainda, em outro momento reafirmou citando o Profeta Oséias:”Quero misericórdia e não sacrifícios” (Mt 9, 13); e, mais uma vez insistiu nas bem-aventuranças: “Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia” (Mt 5, 7).
O quanto Deus é misericordioso, não me proponho a descrever neste artigo, pois pressuponho já ser uma verdade, assimilada, experimentada, e profundamente internalizada, por você querido (a) leitor (a).
Proponho-me a discorrer e aprofundar uma reflexão sobre: o que é ser misericordioso, e em que consiste fazer obras de misericórdia.
Ter misericórdia não é ter pena da alguém. Longe disto, ter e exercitar a misericórdia é ter compaixão, e solidariedade para com a necessidade do outro. Mais do que só dar esmola, é descer até a carência física, espiritual e material da outra pessoa envolvendo-a com nosso ser e elevando-a à dignidade e à vida.
Partindo da Palavra de Deus, como citarei, e da tradição da Igreja (CIC § 2447), podemos falar em quatorze obras de misericórdia. Das quais, sete são obras de misericórdia espirituais e sete corporais.
As obras de misericórdia corporais são:
– Dar de comer a quem tem fome.
Várias vezes, Nosso Senhor Jesus Cristo se preocupou com a fome dos que O seguiam (Lc 9, 10-17). Seu mandato ecoa até hoje:”Daí-lhes vós mesmos de comer” (Lc 9, 13).
Pe. Zezinho expressa muito bem isto na letra de sua canção: ”somos a Igreja do pão, do pão repartido, do abraço e da paz.” É bem verdade que nossas cestas básicas, missas do quilo e “sopões”, servidos nas madrugadas frias, não resolvem os problemas sociais, mas é uma solução imediata que sacia quem sente o desespero da fome.
É urgente e necessário que avancemos em políticas sócias que atinjam a causa da fome, mas enquanto não chegamos ao ideal, exercitemos a partilha no real. “Quem tiver muita roupa partilhe com quem não tem, e faça o mesmo quem tiver alimentos (Lc 3, 11).”
– Dar abrigo aos peregrinos.
Jesus foi um desabrigado já em seu nascimento, quando negaram a José e Maria que estava para dar à luz, um lugar na hospedaria (Lc 2,7).
Tendo em vista que a realidade dos tempos de Jesus era muito diferente da realidade dos tempos atuais, torna-se complicado, perigoso e é até ingenuidade de nossa parte querer acolher em nossas casas, pedintes ou moradores de rua. Porém, Deus suscita obras de acolhimento na Igreja, através dos padres, religiosos (as), e leigos (as), que nos permite praticar esta obra de misericórdia, com nossa ajuda concreta.
Como cidadãos, cristãos, ou enquanto comunidade, somos chamados a contribuir economicamente e voluntariamente nos serviços desta obra.
Não podemos eximir o poder público de uma política habitacional, ao contrário, é nosso dever como cristãos, estar atentos a isto, como obra de misericórdia. No entanto, partilho que conheço inúmeros casos de famílias nos grandes centros que acolhem pessoas vindas do interior até que estas se estabeleçam economicamente.
Sem querer forçar a natureza desta obra de misericórdia, não se poderia entendê-la de uma forma mais ampla, como por exemplo, simplesmente “acolher” na vida familiar, na convivência, no afeto, no dedicar algum tempo? Na escravidão de compromissos intermináveis e espaços curtíssimos entre uma novela e outra, arrumar um tempo, e simplesmente se dispor em “acolher”?
– Assistir os enfermos:
Os Evangelhos relatam abundantemente, momentos em que Jesus acolhe, atende, socorre e cura os doentes. As vezes eram levados a Ele no entardecer (Mc 1,32-34); em outras pediam que Ele fosse até a casa do enfermo, como fez o oficial que pediu a cura do filho que estava morrendo (Jo, 4, 46-53). Vale lembrar a ação de Jesus, quando na casa de Pedro, cura sua sogra (Mt 8, 14-15). Jesus se desdobrou em misericórdia para com os doentes.
Maria, mesmo grávida, andou quilômetros para ajudar e pôr-se a serviço da idosa Isabel, sua prima, grávida de seis meses.
A obra de misericórdia: assistir os doentes começa na família quando se lida com doenças prolongadas e, às vezes irreversíveis. Seja em qualquer idade, e por qualquer problema de saúde, que podem ser, entre tantos: o câncer, as paralisias, a anencefalia, e socorrer sem preconceito os portadores do vírus HIV.
Trata-se também de um trabalho voluntário em hospitais, asilos, e casas de recuperação terapêutica. Estende-se a uma pastoral urbana que visite e acompanhe aqueles que, nos grandes centros urbanos vivem a dor de sua enfermidade na solidão, e no esquecimento.
De forma profética esta obra de misericórdia questiona a ausência de uma pastoral de saúde, tanto em nossas comunidades paróquias, como nos hospitais, que efetivamente possam marcar presença nestes momentos de fragilidade, e vulnerabilidade do ser humano.
Muitos se perguntam: o que fazer para um doente gravemente enfermo?
A resposta é simples, às vezes nada, apenas “estar” presente junto ao que sofre. Misericórdia e solidariedade é estar perto de quem sofre, mesmo sem entender a extensão do sofrimento, pois o pulsar e o latejar da dor é próprio só de quem está machucado.
Assistir os doentes até o fim é uma obra de misericórdia conflitante a toda e qualquer idéia de eutanásia e similares.
Implica inclusive em oferecer, além de recursos físicos, e terapêuticos necessários, a assistência religiosa e espiritual. Fato este que familiares estão se esquecendo e negligenciando.
– Dar de beber ao sedento
Nosso Mestre Jesus disse: “Todo aquele que der ainda que seja somente um copo de água fresca a um destes pequeninos, porque é meu discípulo, em verdade eu vos digo: não perderá sua recompensa” (Mt 10, 42). Em nossos tempos esta obra de misericórdia parece sem sentido, quando cada um tem água encanada, com facilidade em seus lares. Pensa desta forma quem tem o privilégio de viver longe da seca, e dos desafios de andar, em pleno Século XXI, muitos quilômetros para buscar água em açudes, e em carros pipas, num Brasil de graves contrastes sociais que clama aos céus igualdade de direitos.
Podemos não ter como, diretamente praticar esta obra de misericórdia nas regiões do Brasil que sofrem o flagelo da seca, mas podemos de forma indireta fazê-lo. Sabemos que água é vida, e que a médio ou longo prazo tende a ser um “tesouro” que se extingue. A consciência cristã e ecológica impele a “copos d’água” que são dados quando exercitamos o uso responsável da água potável. O uso correto, consciente, e sem desperdício da água é um desmembrar desta obra de misericórdia.
Não obstante, Jesus Cristo, nas bem-aventuranças, fala da sede, porém de uma “sede de justiça” (Mt 5, 6). A sede saciada de justiça não seria o saciar a sede real de água, de dignidade e de solidariedade?
– Vestir os nus
Chamados somos nós, a sermos discípulos de um Mestre que Evangelhos relatam, exortou: “Quem tem duas túnicas dê uma ao que não tem” (Lc 3, 11a)
O apóstolo Tiago escreveu à comunidade que lhe foi confiada pastorear: “Se a um irmão ou a uma irmã faltarem roupas e o alimento cotidiano, e algum de vós lhes disser: Ide em paz, aquecei-vos e fartai-vos, mas não lhes der o necessário para o corpo, de que lhes aproveitará? Assim também a fé: se não tiver obras, é morta em si mesma. (Tg 2, 15-17).
Recentemente, deparei-me com uma situação muito triste, percebi que uma senhora levava muitas peças de roupas, e pares de sapato para um bazar beneficente. O que a principio parecia uma atitude louvável, na realidade era fruto de uma compulsão em comprar, e uma forma velada de esvaziar o guarda-roupa e sapateira para sempre ter espaço que acomodasse os artigos de suas compras, nas freqüentes visitas aos shopping. Caridade? Obra de misericórdia? Creio numa partilha de bens, onde a atitude condiz com a intenção e a real motivação.
Em contra partida soube de algo edificante: uma pessoa após observar que seu colega de trabalho, recém contratado, passou semanas com a mesma calça, se deu conta que era a única que ele tinha, então com muita sutileza, e descrição para não humilhar o colega, o presenteou com uma calça jeans.
– Socorrer os prisioneiros
Ficará à direita de Deus, no grupo dos bem-aventurados, aquele que visitou os que estavam na prisão (Mt 25, 36).
Hoje o acesso nos presídios não é livre, há um certo rigor e triagem para visitas à presidiários. Porém, nossas dioceses ainda são deficientes em se tratando de uma pastoral carcerária efetiva, e dinâmica.
Os presidiários são lembrados em época de eleição, com falsas promessas de novos presídios a serem construídos, caso o candidato ganhe a eleição. E, quando acontecem as rebeliões que, quanto mais violentas e longas, mais espaço terão na mídia. Inclusive inspirando filmes premiados. Mas, a realidade dos presos, logo cai no esquecimento.
Há pouco tempo, um presidiário que na prisão acompanha meu programa de rádio, escreveu-me partilhando: “minha família não me visita, porque têm vergonha de mim, mas eu também tenho deles…”
A obra de misericórdia socorrer os prisioneiros, também se estende ao socorro às famílias dos presidiários (as); auxiliando economicamente as que necessitam, e ajudando-as a superarem os preconceitos.
– Enterrar os mortos
Crer na ressurreição da carne, na vida eterna, faz parte da oração pela qual professamos nossa fé.
No Livro de Tobias encontramos o seguinte: Tobit com uma solicitude toda particular, sepultava os defuntos e os que tinham sido mortos (Tb 1, 20).
O Novo Catecismo da Igreja Católica, assim diz: “Os corpos dos defuntos devem ser tratados com respeito e caridade, na fé e na esperança da ressurreição. O enterro dos mortos é uma obra de misericórdia corporal que honra os filhos de Deus, templos do Espírito Santo” (CIC § 2300).
Cada pessoa é templo do Espírito Santo e mesmo depois de morta, seu corpo merece respeito.
A Igreja permite a cremação do corpo, desde que não seja um ato que se faça numa manifestação de contrariedade à fé na ressurreição dos mortos (CIC § 2301). A doação gratuita de órgãos não é um desrespeito ao corpo quando desejada pela própria pessoa, é uma pratica legitima, incentivada pela Igreja como meritória.
Acredito seriamente que o velório, ou guarda do corpo é muito válido, importante e edificante, tanto para o morto, como para os familiares.
Da parte do falecido pelas orações feitas em seu favor, da parte dos familiares pela oportunidade de perdão, conversão e reflexão. Sobre isto aprenderemos mais nas obras espirituais. São elas: instruir, aconselhar, consolar, confortar, perdoar, suportar com paciência, e rezar pelos mortos (esta ultima é item apresentado no capitulo IV do catecismo de São Pio X). No momento limito-me apenas em citá-las. Em outro artigo, refletiremos detalhadamente sobre elas.
Finalizando este artigo, partilho com você, caro(a) leitor (a), algo que marcou-me muito na infância. Certo dia, minha mãe na sua simplicidade, disse-me: “filho, Jesus Cristo, às vezes desce do céu e se veste com roupas de mendigo, anda pelas ruas e bate nas casas pedindo esmola. Nunca se desfaça de uma pessoa pobre”. Certamente, para alguns não passará de “lorota”, mas há muito de verdade neste ensinamento. “Tive fome e me deste de comer, tive sede e me deste de beber, era peregrino e me acolheste, nu e me vestiste…(Mt 25, 35-40).”
Fonte: padrereginaldomanzotti.org.br