4 de outubro de 2024

“BENDITA ÉS TU ENTRE AS MULHERES” (Lc 1,42a) Uma mariologia do encontro feminino

“BENDITA ÉS TU ENTRE AS MULHERES” (Lc 1,42a)
Uma mariologia do encontro feminino
Rubens Rodrigues Chaves*

Introdução

Este artigo buscará fazer uma análise do encontro de Maria e Isabel narrado em Lc 1,39-45, visualizando deste encontro o seu significado feminino. Em um primeiro momento, de modo sintético, verificaremos como é a figura de Maria para a comunidade lucana. Só depois disso faremos a análise que nos propomos. O objetivo deste trajeto é perceber como o encontro de Maria com Isabel pode significar vida doada e relacional para tantas mulheres de nosso tempo.

1 Maria e a comunidade lucana

Maria é figura de destaque no corpus lucano. Ela aprece em momentos significativos da trama narrativa. Faz-se presente no chamado Evangelho da infância de Jesus, em sua vida pública (cf. 8,19-21; 11,27-28) e está presente na comunidade após a ressurreição (cf. At 1,14). Segundo Casalegno, “essa insistência do evangelista sobre a figura de Maria indica a profunda devoção mariana que animava sua comunidade desde os inícios” (CASALEGNO, 2003, p. 67).
Lucas faz menção a traços significativos da figura de Maria. Primeiro pode-se destacar Maria como modelo de discipulado, sobretudo porque conserva em si as características daquilo que constitui o discipulado cristão: “Maria ouve a Palavra de Deus com fé, guarda no coração e a põe em prática” (MURAD, 2012, p. 54). Maria é também a peregrina na fé, deu, desde muito jovem, o sim decidido ao Senhor e, a partir disso, “iniciou uma travessia na fé, sem saber em detalhes o que iria acontecer. Pois faz parte da experiência da fé arriscar, abrir-se ao novo, passar pela incerteza da noite escura” (ibid, p. 62). Maria ainda é caracterizada como aquela que proclama a justiça de Deus.

Para Lucas, Maria é uma mulher pobre, mas não miserável. A pobreza não lhe destrói a dignidade. Tem um coração pobre, aberto para Deus e voltado para a superação da pobreza. Seguindo a trilha dos profetas e do seu filho Jesus, Maria anuncia que Deus tem compaixão dos pobres e lhes oferece uma nova possibilidade de convivência social (ibid, p. 70).

E, por fim, Maria é a profetiza de toda a humanidade (cf. Lc 1,50-53). É justamente no Cântico de Maria que este traço se delineia de modo mais claro. Neste cântico “anuncia-se que Deus opera três rupturas estruturais: (1) dispersa os soberbos, (2) derruba do trono os poderosos e eleva os humildes, (3) enche os famintos de bens e despede os ricos de mãos vazias” (Ibid., p. 78-79).
Feita esta rápida passagem a respeito do papel de Maria no corpus lucano, passamos agora para aquilo que quer, de fato, expressar o encontro de Maria com Isabel.

2 Visita de Maria a Isabel – encontro da feminilidade

É no arcabouço narrativo de Lc 1,39-56 que encontramos o relato da visita de Maria a Isabel. Quando aconteceu a anunciação o anjo informou Maria sobre a adiantada gravidez de sua parenta Isabel. Prontamente Maria sai para a casa de Zacarias para ali saudar Isabel (cf. Lc 1,39-40) (cf. BROWN. R. E. (Org.), 1985, p. 147). Em sua análise desta perícope, E. Johnson chama a atenção para um dado interessante: “a casa é de Zacarias, mas ele está mudo. Não há outros homens por perto. Essa voz masculina calada é altamente incomum na Escritura. Neste vasto silêncio, repercutem as vozes de duas mulheres, uma louvando a outra e ambas louvando a Deus” (JOHNSON. E, 2006, p. 316).
É bem verdade que a narrativa trás este encontro no espaço doméstico por excelência, a casa. Mas o significativo desta trama é o derramamento do Espírito sobre Isabel e Maria. Elas são as atrizes que ocupam este palco. São mulheres. Elas reverberam em suas palavras a misericórdia de Deus, este que é um dado profético em suas vidas (ibid).
Este encontro pode ser dito encontro da feminilidade porque expressa como “as mulheres grávidas têm necessidade quase física da companhia de outras na mesma condição para partilhar temores, encontrar coragem, expressar esperanças e aprender sabedoria prática a respeito da mudança pela qual passam seus corpos” (ibid). É bem verdade que os protagonistas da cena são outros. Esta cena, além de expressar a alegria do encontro entre Maria e Isabel, relata também a graciosidade do encontro dos nascituros João Batista e Jesus de Nazaré (cf.. BROWN. (Ob. cit.), p. 147). Eles são a expressão da bênção e do novo que se dá na vida de Maria e Isabel. Uma tem necessidade da outra justamente porque, no caso de Isabel, já acostumada com o fato de não gerar filhos, é surpreendida com essa gravidez em idade avançada. No caso de Maria esta bênção vem com uma sobrecarga de dificuldades, pois não sabe como explicar o fato a José, não sabe qual será a reação deste, nem tampouco o que virá como consequência disso para sua vida. Diante das alegrias e perturbações que essas duas gravidezes causam é que se entende porque uma precisa profundamente do contato com a outra. Elas podem ajudar-se, encorajar-se e alegrar-se com o que ainda terão que enfrentar (cf. JOHNSON. E. (Ob. cit.), p. 316).
Elisabeth Johnson menciona o perfil profético de Maria e Isabel. Elas, na força deste encontro, proclamam como, no meio de suas histórias, Deus abençoa os humildes e destrói o plano dos opressores. O diálogo que se põe entre elas sublinha também o caráter político de suas gravidezes, pois representam esperança para o povo de Israel (cf. ibid., p. 317).

A imagem da mulher grávida não é o que costuma vir à mente quando pensamos em um profeta, contudo aqui estão duas dessas profetas grávidas cheias do Espírito que bradam com alegria, conselho e esperança para o futuro. Essa é uma imagem de Maria que é claramente o contrário da serva passiva e humilde da imaginação patriarcal (ibid).

Tendo presente, portanto, o perfil profético de Maria e Isabel, as encaramos como mulheres cheias do Espírito Santo, protagonistas de sua história e, sobretudo, solidárias entre si.

3 No encontro, um reconhecimento

Isabel, a mulher idosa, até então estéril, cheia do Espírito Santo, exclama: “bendita és tu entre as mulheres” (Lc 1,42a). Sabe-se, não obstante esta saudação aqui se dirija a Maria, que no Antigo Testamento esta frase está dirigida, em diversas narrativas, a mulheres famosas da história de Israel. Mulheres estas que, diante de um perigo concreto, colaboraram com a libertação do povo de Deus. Exemplos dessas mulheres são: Jael, mulher de Hérder, o quenita (cf. Jz 5,24) e Judite (cf. Jt 13,18) (cf. BROWN. (Ob. cit.), p. 148).
Aplicando essa sudação à Maria, os biblistas entendem que por ela ter sido dirigida a outras mulheres, isso impede de entendê-la em sentido absoluto, como se Maria fosse a mulher mais bendita, ou que isso a configurasse como superior em relação às demais mulheres (cf. JOHNSON. (Ob. cit.), p. 319). Agora, não obstante isso, essa bênção dirigida à Maria é o reconhecimento de “que Deus se serviu dela no seu plano de salvação” (BROWN. (Ob. cit.), p. 148-149). O versículo em questão não infere que Maria seja a única em todo o sexo feminino que seja bendita, mas é um grito de louvor que se junta ao de uma imensa linhagem de mulheres benditas, libertas e libertadoras pelo poder do Espírito (cf. JOHNSON. (Ob. cit.), 319).
Maria, a bendita, o é, sobretudo, porque o restante do versículo 42 a justifica: “Bendito o fruto do teu ventre”. Embora esta expressão esteja também em Dt 28,1.4, “a bênção que recai sobre Maria é de todo apropriada, enquanto Maria demonstrou obediência à palavra de Deus em 1,38” (BROWN. (Ob. cit.), p. 149).

Considerações finais

Neste encontro de Maria e Isabel lemos a história de tantas mulheres, de ontem e de hoje, que, embora numa sociedade patriarcal, machista e sexista não se deixaram contaminar pelo determinismo. Sabe-se, é verdade, que a figura de Maria foi e é lida como projeção da mulher ideal, donzela, esposa e mãe. Isso tem peso, pois nenhuma outra projeção conseguiu se impor tão fortemente como símbolo de feminilidade (cf. RUBIO, 1981, p. 115). Esta projeção causou também uma pseudo devoção que tem em si fortes desvios psicológicos a respeito da maternidade e virgindade de Maria, sobretudo porque conserva em si uma relação de submissão e infantilização (cf. ibid).
Agora, não obstante tudo isso, cabe à reflexão teológica sobre Maria vê-la muito mais como companheira de caminhada, como alguém que está conosco, que ajuda-nos a dar um passo decisivo em nossas dúvidas, que nos faz sujeitos deslocados, que nos põe a caminho do outro e que com este outro se alegra, partilha a vida e testemunha a misericórdia de Deus, do que como a Santinha pronta e acabada que está no imaginário coletivo, sobretudo aqui na América Latina.
Desejamos, por fim, encerrar esta reflexão com um poema que nos veio à inspiração quando da elaboração deste texto:

MARIA E ISABEL

Maria e Isabel,
Num encontro, a expressão do Deus fiel.
Numa saudação, a emoção.
No ventre, a bradar de alegria,
Estão a Profecia e a Redenção.

Num encontro, a voz de tantas mulheres
Caladas,
Desprezadas,
Sufocadas…

Num encontro, uma profecia:
“Bendita és tu entre as mulheres”.

Num encontro, o reconhecimento
De que, embora o lamento,
Em Maria
Gera-se
O Deus-Libertador.

Num encontro, o feminino
Da mulher de todo tempo
Que porta-voz de sua história deseja ser.

Num encontro, possibilidades
De expressar a igualdade
Que advém do Criador,
Que fez todos em amor,
Para, em cada encontro,
Ir tecendo um terno ponto
De respeito,
De valor…