4 de outubro de 2024

REFLEXÃO FEITA NA MISSA EM EM AÇÃO DE GRAÇAS PELOS 50 DE ORDENAÇÃO DO PADRE MAURIZIO CREMASCHI

Na missa dos 50 anos de padre: Tauá 18/03/2019
Pe. Maurizio Cremaschi

Nas estradas da vida, têm assaltantes e assaltados,
Nos lembra a página do Evangelho hoje proclamada.
Nem sempre sabemos reconhecer quem é o assaltante e quem é o assaltado.
Às vezes o assaltante é tão bem vestido, tão educado, fala tão bonito…
Se apresenta falando de progresso, como a Vale em Brumadinho,
Ou a Globest, perto de nós, no Bezouro,
Como as firmas do Lago de Fronteiras
Que submergem, nas águas, as casas,
O trabalho e a história de um povo…
Como as empreiteiras que compram políticos
Para garantirem seus lucros,
Como a Taurus que lucra, vendendo armas e medo.

Nem sempre, paro – cuido – levanto – carrego o caído
Vejo, mas não enxergo, ouço, mas não escuto;
Tô com pressa, passo adiante.

Lembra, o discípulo amado, na sua carta,
Que somente o conhece quem ama.
Pra conhecer, precisa pisar no mesmo chão,
Precisa poder se tocar e se deixar tocar,
Precisa comer juntos, caminhar juntos;
Precisa de tempo, de simpatia, de compaixão…

As Palavras que iluminaram o dia da minha ordenação,
Há 50 anos, no dia 18 de março de ´69,
Retomo hoje, para olhar pra trás, o caminho percorrido,
Para olhar pra frente, os caminhos que ainda precisamos abrir…

Completo hoje 50 anos de padre, 40 na diocese e na CPT
Cheguei em novembro de ’79, com padre Gerardo Fabert.
De São Paulo, fomos subindo de ônibus, devagar, parando nas favelas
Do Rio, de Salvador, de João Pessoa, de Fortaleza e Sobral
Lá onde uma fraternidade dos irmãozinhos
Ou das irmãzinhas de Jesus conviviam com os mais pobres.

Estávamos já no final dos tempos duros dos generais e da repressão.
Eram os tempos da reconquista difícil dos caminhos da liberdade e da democracia.
Falava-se de anistia, de eleições diretas, de um partido que fosse dos trabalhadores…

Em Crateús a diocese estava reunida com Carlos Mesters,
Buscando as gotas de colírio que deviam ser colocadas nos olhos
Para poder enxergar, na luz das palavras de Deus, as palavras da vida.

Experimentei logo, como é viajar de pau de arara,
Junto a milhares de camponeses e camponesas
E, em Quixeramobim, retomar os legados
Dos 15 anos de Estatuto da Terra.

No CDP leram as cartas enviadas da diocese de Bérgamo
Que me apresentavam com sinceridade:
“Maurizio é um Padre incômodo, mas generoso e sincero…”
Discutiram todos, um bocado, e fui enviado a Parambu
Paróquia onde as Irmãs Ailce e Siebra casavam e batizavam.

O estágio foi passar um mês com Ageu, meu compadre, fazer cercas na serra
E aprender as coisas simples da vida: tomar banho no açude, comer tapioca,
Apreciar o gosto do mamão, da ata, da graviola; e, o mais difícil,
Aprender a escutar, em silêncio, voltando a ser como criança que não sabe falar
E deve, calado, adivinhar o sentido de palavras desconhecidas,
Faladas na praça, na varanda da casa, na capela, no salão da reunião.

Foi uma ascese dura e importante, para aperceber que nada se tem a ensinar
Sem disposição a aprender das pessoas
e dos acontecimentos que a vida coloca em nosso caminho:
Umas coisas aprendi e hoje agradeço a quem me ensinou:

– Sempre olhar a partir dos últimos, das vítimas, dos assaltados
Me disse Zé do Crato quando me acolheu na Assembleia Paroquial de Parambu:
“Se você está disposto a caminhar conosco na luta pela terra, na Serra, seja bem-vindo,
Se não for, pode voltar pra sua terra”.

– Os posseiros da Serra mostraram como caminhar sem deixar rastros,
Cortar as cercas sem ninguém saber quem foi,
Andar no passo lento que faz avançar todo mundo,
Sem ninguém ficar sozinho na frente, sem também ficar sozinho lá atrás;

– Sentado no alpendre da casa Paroquial de Parambu
Um animador de comunidade pediu a benção e falou:
“Padre, cadê as irmãs: queremos marcar uma missa pra comunidade”
E ajudou a reconhecer o papel das grandes mulheres da caminhada:
As irmãs Siebra, Ailce, Lemos, Abigail, Maria Besen, Olga, Jacinta…
A Socorro Matos, dona Dadite, dona de Lourdes, Mundeza, Graça, Chichica…
Tia Rita, Tereza Nodari, Chica do Bernardo, Maria da Serra…

– “Ouvir é diferente de escutar”, ensinou Bilé de Tauá

– Alfredinho, Abigail, Paco, da Luz, André, Gerardo Fabert, Margarete…
Experimentaram e transmitiram pra todos nós “a alegria dos pobres”,
e nos mostraram os caminhos
para permitir que os pobres nos ajudem e nos ensinem…

– Os Bispos do Pacto das Catacumbas nos lembraram
De que não podemos falar proféticas palavras bonitas
Se não paramos primeiro, para rever
Como nós vivemos nas pequenas atitudes do dia a dia.

– Bernardo, Chichica, Nery, Amorim, Neném…
Mostraram, com suas escolhas, que fé não é somente “rezar”:
Precisamos dos “três Paus Santos” para incidir na história
Assumindo a comunidade, os movimentos populares, a militância política.

– Zé Vicente, Ângelo, Machado… os artistas da caminhada
Nos ensinaram a cantar a caatinga e a luta
Até quando faz escuro e a voz sai rouca e desentoada…

– Helênio, Mourão, Siebra, Hélio, Antonio Carlos,
Paco, Alfredinho, Alcides, Osmar, Fragoso e Geraldinho
Mostraram que é possível se querer bem.
Sendo pessoas que pensam e agem tão diferente…

Não foram somente pessoas encontradas nos caminhos
Que acenderam, pra nós, novas luzes com suas vidas.
Foi também o sertão e a caatinga,
Foram os morros e as serras,
As matas, as chuvas e as secas
As estradas, as praças, as periferias,
Os açudes e os riachos
Dessa mistura todinha
É feito o nosso corpo, a nossa mente, a nossa alma.

Disseram-me que nasci grosso e duro
Como os cocos das palmeiras…
Sei que fiz sofrer, mas sofri também,
Sempre paguei pelo que fui, pelo que sou.
Que possam ser sofrimentos e dores de parto
Por vidas novas, eu espero.

Disseram-me, porém que dentro da casca, dura e difícil de abrir,
Os cocos guardam, ciumentos, seu leite doce e gostoso.
Que os tempos permitam a todos nós,
Envelhecer sem perder a firmeza,
Sem perder a alegria, sem perder a ternura.

Não quero olhar pra trás, com saudade de um tempo que se foi.
A memória é reconhecimento agradecido de tantos dons recebidos.
A memória é raiz que sustenta e permite avançar no caminho.

Ao sair de Bérgamo, cidade onde nasci e vivi,
Recebi, como presentes, e augúrio pra viagem,
O mapa das estrelas que brilham,
Diferentes e bonitas, no sul do mundo:
“Vá para outra terra e outro céu!
Não vai mais enxergar a luz da Estrela Polar,
Oriente-se com o brilho do cruzeiro do sul”.

Recebi uma bússola, de presente, também:
“Não tenha medo do novo,
Segure o rumo, não perca o caminho”

Agradeço hoje a Deus por ter sido acolhido
Por esta igreja de Crateús que amo e admiro:
Por Parambu, pelo Pé de Serra de Independência,
A Vila Coutinho, hoje Quiterianópolis,
Por Tauá, Ararendá, as CEBs, a CPT…

Olhando pra frente, partilho, com todos,
As palavras que recebi no começo:
“Não tenham medo do novo,
Segurem o rumo, não percam o caminho”!